Memória das minhas putas tristes

Gabriel García Marquez

»»» Prémio nobel da literatura em 1982













Quando voltei fresco e vestido ao quarto de dormir, a menina dormia de barriga para cima à luz conciliadora do amanhecer, atravessada de um lado a outro da cama, com os braços abertos em cruz e senhora absoluta da sua virgindade. Que Deus ta guarde, disse-lhe. Pus-lhe na almofada todo o dinheiro que me restava, o seu e o mei, e despedi-me para sempre com um beijo na testa. A casa, como todo o bordel ao amanhecer, era o que havia de mais próximo do paraíso. Saí pelo portão do quintal para não me encontrar com ninguém. Sob o sol abrasador da rua comecei a sentir o peso dos meus noventa anos e a contar minuto por minuto os minutos das noites que me faltavam para morrer.

Tenho muita má química com os animais, da mesma maneira que a tenho com as crianças antes de começarem a falar. Parecem-me mudos da alma. Não os odeio, mas não posso suportar porque não aprendi a lidar com eles. Parece-me contra natura que um homem se entenda melhor com o seu cão do que com a sua esposa, que o ensine a comer e a descomer às suas horas, a responder a perguntas e a partilhar as suas mágoas. (...) Quando bateram as sete na catedral, havia uma estrela só e límpida no céu cor de rosas, um navio lançou um adeus desolado e senti na garganta o nó górdio de todos os amores que podiam ter sido e não foram.

Logo que abri a porta de casa veio-me ao encontro a sensação física de não estar só. Consegui ver a sombra fugaz do gato que saltou do sofá e se escapuliu de uma refeição que eu não lhe tinha servido. (...) Quando passou o aguaceiro continuava com a sensação de não estar só em casa. A minha única explicação é que assim como os factos reais se esquecem, também alguns que nunca existiram podem estar nas recordações como se tivessem existido. Pois se evocava a emergência do aguaceiro não me via a mim mesmo só na casa mas sempre acompanhado por Delgadina. Sentira-a tão perto naquela noite que ouvia o rumor da sua respiração no quarto de dormir, e o pulsar da sua face na minha almofada.

Atormentado de amor, mandei arranjar os estragos da tempestade e aproveitei para fazer outros muitos remendos que vinha adiantando há anos por insolvência ou por inércia. Reorganizei a biblioteca, na ordem pala qual tinha lido os livros. Por último, mandei para leilão a pianola como relíquia histórica, com os seus mais de cem rolos de clássicos e comprei um gira-discos usado mas muito melhor do que o meu, com altifalantes de alta fidelidade que ampliaram o âmbito da casa. Fiquei à beira da ruína, mas bem compensado pelo milagre de estar vivo na minha idade. (...) Descobri que não sou disciplinado por virtude, mas como reacção contra a minha mesquinhez, que passo por prudente por ser pessimista, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que não se saiba que pouco me importa o tempo alheio. Descobri, por fim, que o amor não é um estado de alma mas um signo do Zodíaco.

Lendo Os Idos de Março encontrei uma frase sinistra que o autor atribui a Júlio César: é impossível não acabar sendo como os outros julgam que somos.

Estava a pôr em ordem os meus papéis velhos, o tinteiro, a pena de ganso, quando o sol estoirou entre as amendoeiras do parque e o navio fluvial do correio, atrasado uma semana pela seca, entrou bramindo no canal do porto. Era por fim a vida real, com o meu coração a salvo, e condenado a morrer de bom amor na agonia feliz de qualquer dia depois dos meus cem anos.

Ps: Todo o texto acima foi retirado ao livro em questão e pertence-lhe.