Aquele costume dos adultos irem à igreja enchia Ana de suspeitas. A ideia do culto colectivo ia contra o sentido íntimo das conversas com o Tio Deus. Quanto a ir à igreja para se encontrar com o Tio Deus, era absurdo. Se ele não estava em toda a parte, então não estava em parte nenhuma. Não via a relação entre a igreja e «falar com o Tio Deus». Para ela tudo era claro: ia-se à igreja para receber a mensagem quando ainda se era pequeno. Uma vez recebida a mensagem, saía-se para agir. Quem continuava a ir à igreja é porque não tinha recebido a mensagem ou não a tinha compreendido, ou simplesmente «para se mostrar».

A curiosa insistência da catequista Senhora Haynes e do Reverendo Castle em usarem as palavras «ver» e «conhecer» tão fora de propósito eram facadas no coração de Ana. Certo domingo, no sermão da missa, o Reverendo Castle falava de «ver» o Tio Deus, de comtemplá-lo «frente a frente». saberia ele sequer o perigo que o ameaçava? Ana agarrou-me a mão e apertou-a com força, abanando a cabeça. Lutava com todas as suas forças para extinguir o seu fogo interior, que, uma vez liberto, teria fulmonado instantaneamente o Reverendo.
E, apropósito de fogo, digamos que os do inferno do Porco Sujo não passavam de brandões fulmegantes ao pé do fogo do coração de Ana.
Num murmúrio que ecoou por toda a igreja, disse-me: - E o Qu'é qu'ele vai fazer s'o Tio Deus não tiver cara ninhuma? Nem olhos, ahn, Fynn?
O Reverendo hesitou um instante, depois continuou subindo o tom para atrair a atenção e os olhares dos seus paroquianos.
Ana repetiu distintamente: - O qu'é qu'ele vai fazer?
- Não faço ideia - murmurei eu como resposta.
Ela puxou-me o braço para eu me aproximar e colou a boca ao meu ouvido: - O Tio Deus não tem cara - segredou ela.
Voltei-me para ela, curioso: Como é isso?
Ela tornou a colar a boca ao meu ouvido: - Proque não percisa de se voltar par' ver o que 'tá à volta dele, sabes? - E tornou a encostar-se no banco sacudindo a cabeça afirmativamente e cruzou os braços marcando bem o ponto final.
No caminho de regresso, perguntei-lhe o que ela tinha querido dizer com «... não precisa de se voltar...»
- Bem - disse ela -, eu tenho uma «frente» e umas «costas», e par' ver o que 'tá atrás tenho de me voltar. O Tio Deus não.
- Então. como é que ele se governa?
- O Tio Deus só tem «frente», não tem «atrás».
- Ah, compreendo! - disse eu.
A ideia de o Tio Deus não ter «atrás» pareceu-me tão engraçada que, apesar de todos os esforços, não consegui evitar uma enorme gargalhada.
Ana ficou muito espantada com o meu riso.
- De qu'é que 'tás a rir?
- Da ideia de o Tio Deus não ter atrás - disse eu, quase sem fôlego.
Encarquilhou os olhos um momento, esboçou um sorriso e depois todo o seu rosto se iluminou: - É verdade, que não tem! Nem atrás, nem cu, nem coisa ninhuma. - E as gargalhadas desceram toda a rua em vagas que fizeram estremecer à passagem todo o grupo de cristãos convictos do domingo, que franziram o sobrolho.
- O Tio Deus não tem cu! - começou Ana a cantar com a música de «Avante, Soldados de Cristo!»
Os cristãos convictos ficaram horrorizados. «Abominável!», disse o fato de domingo, que se sentiu amarrotado, «Uma verdadeira selvagem!», rangeram os sapatos de verniz, «Diabólica!», tilintou a corrente de ouro do relógio batendo na barriga do colete, mas Ana continuava a rir, de sociedade com o Tio Deus.
Ao voltar a casa, Ana exercitou-se comigo no seu novo jogo. Conforme se lançava espiritualmente para Deus, precipitava-se para mim fisicamente. «O Tio Deus não tem rabo» não era uma fantasia, nem uma brincadeira de criança, nem um disparate. Era assim que nela o espírito levantava voo. Por meio de tais conclusões, lançava-se para os braços do Tio Deus, e o Tio Deus recebia-a. Ana tinha a certeza de que ele o faria, que não a deixaria cair, que não corria o menor risco. E que não havia outra coisa a fazer senão isso. Para se salvar.

Ps: Todo o texto acima foi retirado ao livro em questão e pertence-lhe. O livro é constituído em vários capítulos e a selecção acima é da responsabilidade do administrador do blog. Perdão por qualquer erro que possa ter cometido.