engarrafar sensações.

tomado o remédio da liberdade concedida, as ações decorrem em dilúvio de vontades. 
quem somos nós quando queremos ser outra coisa?

hoje sinto-me bem, quis apanhar a brisa da manhã e voar com ela e,
 então, fugi do meu lado depressivo, corri o mais que pude com o 
intuito de me afastar do negativismo, e tomei uma pequena dose de 
alegria. em estímulo directo, condicionei-me a espasmos e saltos 
quase orgásmicos de excitação convulsa - da próxima vez, não me 
esquecerei, lerei atentamente as contra-indicações. mas agora não 
me interessa, já me perdi no meu mundo de fantasia em que sou 
uma abóbora de dia das bruxas e tenho em mim mais que um 
sorriso diabólico, tenho em mim a necessidade obscura de ser uma 
abóbora com intuitos diabólicos em se tornar um humano diabólico 
colecionador de abóboras com sorrisos diabólicos.


a prateleira velha, descascada em lascas disformes, não é uma 
laranja. e a minha vontade hoje não se pactua com a alucinação, ou
teria eu escolhido pegar noutra garrafa. serão as contra-indicações 
indicadas a pessoas contraditórias? esta alegria em estado de júbilo 
constantemente crescente concede-me as demais ilusórias 
perspectivas, já cresci à altura dos meus sonhos. a relação com
o meu sono já foi mantida há muitos relógios atrás, aglomerar 
segundos novos é o melhor modo de romper um relacionamento!
adeus sono, adeus clausura nocturna de colchão/rede de mantas que
me apanham navegando na realidade, adeus ponteiros/carrosséis de 
compromissos que me comprimem! sou uma cebola em camadas de espontaneidade!


tomado o remédio da liberdade concedida, as ações decorrem em dilúvio de vontades. 
quem somos nós quando queremos ser outra coisa?

quero água, água, água, ai a sede de rodar em furacões! não há 
outro modo de domesticar as pressões citadinas que me consomem 
senão assim: inconsciencializar as energias. não há outro modo de
 fugir às tenazes das rotinas senão este: impossibilitar o pensamento.
 largo-me em lagarta no casulo e evoluo em borboletar-me euforicamente 
pelas ruas, pelas pontes, pela calçada descalçada de passeio. pés
 com calos que não calam a calçada e feridas em metamorfoses!
os meus saltos, na verdade, são silêncios. o meu sorriso, na verdade,
 causa-me vertigens. sou muito pequenino para as minhas loucuras
 grandes. mas dou-lhes a mão, e deixo-as levarem-me ao escorrega
 das ruínas, onde elaboro lembranças que cuidam de mim como
 pensos rápidos. são o meu Betadine para os sentimentos não correspondidos. 
deixando-me estar assim, inesperado, transpirado, maltratado. 
quem somos nós quando queremos ser outra coisa...

somos aquilo que acontece.

Arremessos de sono ao teclado.

Arrotei.
Depois pedi perdão, mas ninguém estava lá.
Ao levantar-me da mesa da cozinha, a cadeira velha chia mais alto 
ao sabor da solidão, como que gritando por ajuda,
como que gritando por conhecer outras pessoas,
como que expressando fúria em sentir sempre o mesmo cu,
sempre o mesmo cu pesado em cima de si.

e então, tomando essa atenção, respondo em desconsideração:

excelentíssima cadeira de mesa, que me acompanhas da entrada à sobremesa,
e, em momentos mais tardios, me acompanhas na ceia, depois da uma e meia,
venho, por este meio agradecer-te, por teres a amabilidade de suportar o peso
do meu corpo cada vez mais molesto e glutão, és a minha única companhia.

contudo, como de momento estás gritando e gritando,
eu tenho em minha posse um martelo para te calar:
o ser humano tem este poder sobre as cadeiras,
torná-las em materiais de madeira descompostos.

é como desmembrar um inimigo.
mas sem me tornar um sociopata. 

o ruído em dias mornos.

mesmo antes de me teres perguntado se eu estava bem, eu estava bem.
tínhamos a melancolia da tarde fria, o paralelo estado capaz de nos unir mesmo em silêncio, 
e tu estavas bonita, mas não era por isso que eu estava bem. 

a parede de conchas de praia desaguava em mim memórias de outro espaço, desenvolvia em mim a capacidade de me sentir bem numa casa onde outrora fui feliz. mas tu não entendeste o brotar das sensações, não compreendeste e saíste magoada quando, na minha sinceridade, te referi sentir-me em paz. para ti, pensamentos de fuga à nossa relação eram uma promiscuidade. a parede de conchas, o estado capaz de reflexão e o sentimento de proteção que exercias em mim corresponderam a uma percepção de enquadramento de sensações. diante de ti, enamorados, perguntaste se eu estava bem. eu respondi que a calma, a paz, o sossego e a alegria interior que me contaminam em momentos em que os segundos não passam, me transportavam para outra casa, sem realce de saudade do passado, sem sentido de oportunidade em recordar outras mãos que me afagaram. agitada, não procurando compreender a sensibilidade de estados naturais, pactuaste com a insensibilidade da materialidade. alimentaste uma dúvida degenerativa, mencionaste sentir-me melhor nos braços de outra pessoa. e contaminaste o alegre silêncio que nos unia. ao abotoares as tuas razões em teu peito, criavas distância a meu lado. o ciúme, a falta de coragem, a incompreensão e incapacidade para uma conversa entre pares, aliciavam-te à solidão. teus olhos, fugindo dos meus, não me magoavam nem me abatiam, mas colocavam-me uma questão: irás morrer em flor nestes momento inférteis? na ausência em me procurares, na incapacidade de ligação, não te perdes e não te encontras. 

eu já não estava bem.