#9

quando o tio foi atropelado pelo autocarro ficou com as tripas de fora

e a cabeça aberta. tinha, também, uma barra de cereais no bolso, mas os

cães, que se apoderaram dos seus pulmões expostos, não se aperceberam

de tal fonte nutritiva.

de qualquer forma, o que interessa é o cadáver do tio, frio e morto,

tão duro como um calhau ou uma pedra. a criatura estava mais

falecida que um gato esventrado. depois das sete vidas.

#8

Oh, que pitéu do céu que terminei agorinha de manjar!

que coisinha saborosa e deveras muito boa!

que sabor divino, que bom, que...


CALA-TE PORRA!

que quereis com tamanha incredulidade auditiva?

furar meus tímpanos?

falai de outra forma meu símio do passado, meu amigo num universo paralelo!

podes comer e beber e foder e ladrar, mas recompõe-te homem!

ninguém liga peva!  és um maricas de um cozinheiro!

#7

A minha melhor amiga roubou-me o namorado, dois maços de tabaco,

uma girafa anã, meio leite com café e cinco euros da bancada e ainda

me diz que eu não dou nada à nossa amizade.

querido diário, que hei-de fazer?

estarei eu condenada ao fracasso de perder coisas que tinha e que,

por motivo de perda, deixei de possuir? 

Onde tinha a girafa a cabeça ao nascer anã?

alguma vez farei amizade com um estripador de órgãos?

ajuda-me diário, meu único amigo à face desta terra solitária.

#6

Era de conhecimento público que o público tinha conhecimento.

e era do conhecimento geral do público que o público tinha um 

conhecimento particular. em geral o público sabia que sabia.

e em particular o público resguardava esse saber.

de uma forma universal todos sabiam estritamente alguma coisa.

melhor explicando... as pessoas do público partilhavam de um saber comum.

em comum com as pessoas o saber do público era partilhado.

todos sabiam que sabiam alguma coisa.

#5

Foda-se que caralho aquele filho da puta sempre a dizer merdas

o nojento do cabrão não sabe ser porra de educado paneleiro do 

rabeta e a filha dele também aquela rameira porca nojenta são

todos uns filhos da puta a encher a página de merdices e asneiras

e o caralho deveriam ser todos cagados para uma cova montes

de bichos filhos de um unicórnio nu.

#4

Excelentíssimo Presidente da República, venho, por este meio,

felicitar-lhe pelo aumento da idade da reforma.

eu já trabalhei muitos anos e simpatizo efusivamente com atividades

rotineiras que exerçam esforço físico e capacidade cerebral.

os meus amigos inexistentes e a minha ex-mulher permitem-me 

a total concentração em atividades laborais.

até os filhos que não tive me apoiam e congratulam.

tudo graças ao senhor, você é deveras porreiraço.

#3

Querido leitor,

você é uma besta, uma bosta e um balde com pus.

consigo eu esfrego metade de uma sanita com excremento, eu deixo bosta pelo 

parlamento, eu faço cocó no seu casamento.

o leitor, para mim, é uma flor de jardim depois de uma vaca ruminar,

é um bezerro abatido a chiar, é o cu sujo por cagar.

leitor, você é uma poia que boia insistentemente,

você é uma poia!

#2

Paizinho,

ontem estava a passar no corredor e vi a tua pilinha grande quando

estavas a fazer xixi. Porque não fechaste a porta da casa de banho,

és algum tarado? gostas de meninas pequenas? tens suásticas?

suas que nem um suíno?

ontem sonhei que a tua pilinha me protegia da chuva, é muito grande.

e depois cortei-a com uma navalha ferrugenta e dei-a de come a um cão vadio.

ele gostou e deu ao rabo. a bicha...

#1

Querido diário,

hoje dei uma bufa. não cheirou mal mas foi desconfortável porque manchei a cueca.

também fiz xixi na cueca mas foi só um bocadinho. 

a coitada da cueca já teve dias melhores.

de vez em quando dou bufas. e vomito sangue.

também reencarno em chafariz e mato a sede às pessoas.

adoro matar!

Como aprender a voar:

O melhor momento para voar é, normalmente, de manhã: quando os velhos compram o seu pão, lá pelas oito da manhã, oito e meia, quando o resto do mundo está a dormir.

O melhor momento para voar é, normalmente, quando não há mais ninguém perto de ti que voe. 
Ou melhor, em horas descongestionadas - uma palavra dificil de se dizer mas útil em algumas situações, como esta.

Por exemplo, durante a hora do almoço não há muitos pássaros no céu a doirar o meu caminho. 
Estão a alimentar os seus filhos, ou a roubar comida a outros pássaros para alimentar filhos que são seus. A melhor hora será pelo meio dia e meia, quando o zé está a assar sardinhas com o lume a arder e queima a pilinha sem ninguém saber. Essa é uma das horas mais descongestionadas dentro do conjunto de horas congestionadas que temos no conjunto de 24 horas diárias que um dia tem.

Como é que se voa?
Uma pergunta muito utilizada por professores do ensino primário quando querem ensinar os seus alunos passarinhos a viver a vida.
Ora, é uma pergunta que não tem resposta, cada um voa à sua maneira.
Uns voam pela esquerda, outros voam pela direita, outros acabam por voar estupidamente na faixa do meio como se fossem burros ou pior que eles. Como se fossem uma paragem de autocarro disponível fora da cidade, onde só vivem velhos atrasados nas horas do relógio.

Mas, na verdade, tudo bem, sim senhor, cada um voa como quer...mas...
Para onde é que eu voo? Vou para aqui, vou para ali...vou para acolá?
Essa também é outra questão, não tão utilizada como a primeira mas, normalmente, também se utiliza por algumas pessoas que queiram perguntá-la.
Ora, isso também depende da vontade de cada qual. É o que eu posso dizer.
Uns voam para cima, outros voam para baixo, uns tocam a concertina e outros o contrabaixo.
Uns nasceram num sítio urbano e vieram morar para um sítio não urbano, outros vice-versa e etc.
Depende da vontade de cada qual. Cada qual faz o seu voo.

Então, e agora, depois de toda esta informação útil,
e voar para quê?
Bom, "voar para quê?" também é uma boa observação em modo interrogativo.
Ora, voar porque se uma pessoa não voa vai ganhar raízes que não crescem. Será, como dizia o meu pai, uma couchpotato. E ele sabe muito bem o que são couch potatoes, porque ele é uma pessoa de sessenta anos e, certamente, já conviveu mais com couch potatoes do que eu.

Portanto é necessário voar, é necessário saber voar, é urgente o amor, é urgente um barco no mar.
E é necessário não ficar parado. 
Estas são as regras fundamentais do voo.

Para a próxima lição irei trazer um convidado: uma águia passarôca roliça que já percorreu, pelo menos, cinco quilómetros entre a sua habitação e a superfície comercial mais próxima - é o suficiente para acontecerem tragédias como, por exemplo, ser atropelado por um carro.

Portanto não percam a próxima edição de Como é que se voa?, porque eu irei prosseguir com as sessões; neste momento gratuitas e, posteriormente, talvez também.

Não se esqueçam, a determinada hora de determinado dia cá estarei para prosseguir com o voo.
Obrigado,
Não se esqueçam de voar.
Atenciosamente,
passarinho bébé.

Escutai as Escuteiras!

 Enquanto o cão se debruçava entusiasticamente pelo canto mais quadrado da casa, com o rabo empinado num raio de 90º, eu comia cereais de arroz tufado e acompanhava a decomposição do leproso. Era dia cinquenta e cinco de Moscovo e já me tinha adiantado nos meus deveres diários: alimentar a couve moribunda de meu pai, patinar a escultura de gelo antiquada que comprei na loja da minha prima Miguel, sucumbir aos pés de uma mala giratória e reencarnar milagrosamente - enquanto cuspia excrementos de papoilas gelatinosas - perante o cozido mais assado da fritura guisada. Não tinha, portanto, muito que fazer.

Face ao exposto, e não contrariamente, decidi anotar o poema que vagueava ao sabor da minha saliva; na minha mente molhada de cuspo aleatório: 

 queria mãe, querido pai, então que tal? 

nós confinamos do jeito que o governo quer.

entre os dias que passam, menos mal,

lá vem um que nos dá mais que fazer.

mas falemos de coisas bem melhores,

a Cutilde tem covid mas não sida,

o rapaz não acede aos computadores

e a porta de casa não tem saída.

espero que não demorem a mandar

as unhas que roí do pé do zé carteiro,

tenho coisas para fazer, tenho vidas para acompanhar.


Deitei-me, na retrete de minha alma, e decidi abandonar tudo o que me rodeava: a enumeração. a numeração, a mera São; tudo o que preenchia o espaço daquele local. Faleci, ora bem, por antecipação. Finalmente, descobri que o ser é meia noite e meia e ele, descomposto, já não se parece com o que era e talvez já não seja o que foi.

Leproso, desfragmentados pedaços em pedaços. Quem és tu, afinal?