Enquanto o cão se debruçava entusiasticamente pelo canto mais quadrado da casa, com o rabo empinado num raio de 90º, eu comia cereais de arroz tufado e acompanhava a decomposição do leproso. Era dia cinquenta e cinco de Moscovo e já me tinha adiantado nos meus deveres diários: alimentar a couve moribunda de meu pai, patinar a escultura de gelo antiquada que comprei na loja da minha prima Miguel, sucumbir aos pés de uma mala giratória e reencarnar milagrosamente - enquanto cuspia excrementos de papoilas gelatinosas - perante o cozido mais assado da fritura guisada. Não tinha, portanto, muito que fazer.
Face ao exposto, e não contrariamente, decidi anotar o poema que vagueava ao sabor da minha saliva; na minha mente molhada de cuspo aleatório:
queria mãe, querido pai, então que tal?
nós confinamos do jeito que o governo quer.
entre os dias que passam, menos mal,
lá vem um que nos dá mais que fazer.
mas falemos de coisas bem melhores,
a Cutilde tem covid mas não sida,
o rapaz não acede aos computadores
e a porta de casa não tem saída.
espero que não demorem a mandar
as unhas que roí do pé do zé carteiro,
tenho coisas para fazer, tenho vidas para acompanhar.
Deitei-me, na retrete de minha alma, e decidi abandonar tudo o que me rodeava: a enumeração. a numeração, a mera São; tudo o que preenchia o espaço daquele local. Faleci, ora bem, por antecipação. Finalmente, descobri que o ser é meia noite e meia e ele, descomposto, já não se parece com o que era e talvez já não seja o que foi.
Leproso, desfragmentados pedaços em pedaços. Quem és tu, afinal?