16.
Queria sempre estar connosco a sós. Ladrava ao carteiro, ao electricista, a quem quer que não fosse da casa. Cão exclusitivista. Mas também actor. Quando havia visitas mudava de táctica. Com total perversidade, ele, que nunca prestava vassalagem a ninguém, escolhia uma vítima, aproximava-se devagar e encostava a cabeça a pedir festas, expressão de mágoa e súplica, como quem diz: Já que eles mas não fazem faça-mas você.
Teatro, puro teatro. Mas havia quem se deixasse levar. Uma amiga da casa chegou a dizer: O cão anda triste, deve estar cheio de carências.
E ele enroscado na sala, a olhar de soslaio para nós, com ar de gozo.
Em momentos assim, até os meus filhos perdiam a cabeça. Então, quando as vítimas saíam, fechavam-no de castigo na cozinha. Causa perdida. Ele começava logo a uivar e a raspar.
17.
(É melhor que não faças fitas, são pessoas de cerimónia as que estão cá hoje, deixa os chocolates em paz, não me obrigues a da uma sapatada num cão que não se vê.)
18.
-Fiteiro, disse eu numa dessas ocasiões.
- Como tu, retorquiu Joana, minha filha. Tu também fazes fitas, pai, às vezes amuas para chamar a atenção ou para que a gente te dê mimos, o cão percebe isso tudo. E os manos fazem a mesma coisa. Até a mãe. O cão imitanos a todos, tudo o que ele faz é para que se repare nele e se lhe dê mais carinho. Não é por ser cão que ele não tem sentimentos.
Cão como nós, pensei. Mas preferi calarme. A minha filha era igual a mim, igual ao cão, igual aos outros. Nunca se deixaria vencer ou convencer. Por isso não lhe dei troco. Por comodismo. Como o cão, quando se ralhava com ele e ele fazia a parte que não ouvia e continuava a dormir ou a fingir que dormia, enroscado na sala sobre si mesmo.
50.
Cão como nós
Como nós eras altivo
fiel mas como nós
desobediente.
Gostavas de estar connosco a sós
mas não cativo
e sempre presente-ausente
como nós.
Cão que não querias
ser cão
e não lambias
a mão
e não respondias
à voz.
Cão
Como nós.
Cão como nós
Como nós eras altivo
fiel mas como nós
desobediente.
Gostavas de estar connosco a sós
mas não cativo
e sempre presente-ausente
como nós.
Cão que não querias
ser cão
e não lambias
a mão
e não respondias
à voz.
Cão
Como nós.
Manuel Alegre
Ps: Todo o texto acima foi retirado ao livro em questão e pertence-lhe. O livro é constituído em vários capítulos e a selecção acima é da responsabilidade do administrador do blog. Perdão por qualquer erro que possa ter cometido.